quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

De garganta limpa, um passado sujo

O livro Corações Sujos não está entre os mais populares de Fernando Morais. Entretanto, a história é digna de prêmio. Tanto é que a obra, lançada em 2000, foi vencedora do prêmio Jabuti de 2001. Em 2010, a história foi adaptada para o cinema. E em 2011, em uma aula de jornalismo de revista, recebi a indicação da leitura. Corações Sujos é um daqueles livros que te suga, te destrói e reconstrói ao longo das páginas. É um história que exige investigação, dedicação e força de vontade para se contar. Afinal, não é qualquer repórter que se dedica a cinco anos de pesquisas, entrevistas e estudo de documentos.

Mas, convenhamos, Morais não pode ser chamado de "qualquer um". Aos 65 anos, ele carrega consigo o peso de ser um dos jornalistas mais importantes do país. Mineiro, recebeu três vezes o Prêmio Esso e quatro vezes o Prêmio Abril de Jornalismo – as duas premiações mais importantes do país. Trabalhou nas redações da revista Veja, do Jornal Folha de S. Paulo e da TV Cultura. Mas foi por meio de seus livros que passou a ser reconhecido no mundo inteiro – suas principais obras foram publicadas em 18 países.

Morais é autor de algumas das biografias mais relevantes do Brasil. Em Olga, remonta a história de Luis Carlos Prestes e sua marcha pelo país, a luta contra a ditadura e o sofrimento da personagem que dá nome ao livro nos campos de concentração nazistas. Já em Chatô, o rei do Brasil, Fernando Morais viaja no tempo para contar a trajetória de Assis Chateaubriand, o magnata brasileiro que construiu um dos maiores impérios comunicacionais do mundo. Em comum, suas obras têm a característica de reconstruir o passado para explicar o presente.

Em Corações Sujos não é diferente. A obra conta a história da comunidade japonesa – mais de 200 mil imigrantes daquele país – no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e após a derrota dos “súditos do Eixo”. Com detalhes que esclarecem desde o motivo da vinda dos imigrantes até a dificuldade de muitos descendentes de aceitarem a derrota do Japão na guerra, Morais nos apresenta a Shindo Renmei – uma organização secreta japonesa encabeçada pelo Coronel Kikawa com o objetivo de limpar a colônia dos traidores.

Assim, após a Segunda Guerra, a comunidade japonesa (concentrada principalmente em São Paulo) divide-se em duas vertentes: os “vitoristas”, que não acreditam na derrota do Japão e que, posteriormente, começam a forjar notícias de que o Japão invadiu os Estados Unidos, derrubou seu presidente, destruiu sua frota e dizimou seu exército; e os “derrotistas”, japoneses com nível cultural mais elevado e que acreditaram na derrota de sua pátria sem contestação. Eles passaram a ser chamados de “Corações Sujos”.

Considerados traidores, os “derrotistas” são constantemente ameaçados pelos seguidores da Shindo Renmei. A Liga do Caminho dos Súditos (tradução de Shindo Renmei) contava, de acordo com seu idealizador, Coronel Junji Kikawa, com mais de 120 mil associados. Os membros, em geral colonos, verdureiros, tintureiros, sapateiros e vendedores ambulantes, pagavam mensalidades que variavam de dois a 10 cruzeiros. Ao fim das investigações, a polícia concluiu que a seita movimentava uma média de 700 mil cruzeiros por mês – cerca de 500 mil dólares hoje.

Esse dinheiro era utilizado para a manutenção de boletins, panfletos e outras publicações que deveriam espalhar a ideia de que o Japão tinha vencido a guerra. Cada agente da Shindo Renmei ainda levava no bolso um panfleto que explicava como criar uma sucursal da seita, como fazer a comunicação de forma segura e o que deveria ser feito para sabotar o inimigo. Mas era o capítulo final que enchia de orgulho a alma dos patriotas: a promessa de que todos os imigrantes seriam repatriados e poderiam voltar à “Grande Ásia Oriental” - uma superpotência econômica em que o Japão se transformaria após vencer a guerra. Por meses os fanáticos esperaram pelo navio que viria buscá-los. É lógico, em vão.

A obra de Morais nos faz refletir não apenas sobre o descaso com que os japoneses foram tratados no Brasil durante a guerra – principalmente com as duras restrições impostas pelo governo Vargas e potencializadas após a entrada do Brasil na guerra -, mas também sobre a força do espírito nipônico frente às informações de que o Japão perdera a batalha.

Se os colonos foram proibidos do acesso ao rádio, aos jornais e às plataformas de comunicação em língua japonesa, não terá sido isso um dos grandes motes para que a informação fosse deturpada e uma comunidade inteira conduzida a acreditar em uma mentira? Será que, se os japoneses tivessem o direito ao acesso da informação tal qual teriam caso estivessem em sua terra natal, as ações da Shindo Renmei poderiam nunca terem ocorrido? São perguntas sem resposta. Mas, é importante lembrar, como foi dito a certa altura da obra: somente um japonês poderia ser capaz de dizer a outros japoneses que aquilo em que eles acreditam não passava de uma mentira.

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